28 de jan. de 2009

A Rosa de Natalie

Era um homem que dava ares austeros, quase intocável. Ele se mesclava nas esquinas perdidas da cidadela, olhava para tudo de um modo imponente, rememorando um típico quadro de art noir.


Carregava consigo uma pequena maleta de couro marrom, bastante desbotada e antiga, por sinal. Vestia-se para ser o par perfeito das donzelas de Modigliani. Sua aura ríspida impedia qualquer um de arriscar a dizer quantos anos tinha...Era provável que já tivesse completado 60 janeiros.

“the rose you gave me,
it rottens sick
in a wild, painful
sunny saturday”

Estas palavras eram escritas pela mão esquerda de Natalie, no momento em que percebeu que estava sozinha e não sabia de nada...

Parece que somos subitamente tomados pelas mais inimagináveis obsessões...aquela coisa (ou criatura) estranha se instala e abre sua ferida pálida dentro de nós...e somos belamente conduzidos e introduzidos a este pequeno mundo fantástico de lembranças e nostalgia. Já vi pessoas vitimizadas por inúmeros tipos e cores de obsessões...Lucy sentia um prazer resignado quando se auto-mutilava – alfinetes, cacos de vidro, lâminas, facas, tesouras -...Mariana estranhamente venerava uma paixão passada de seu marido – Camila, a menina do beijo que não pode ser olvidado - ...Lisa, a moça que revivia mágoas e constantemente ameaçava quem se aproximava demais, ela dizia: serei a maior cicatriz que já teve...(ou a causadora, entenda como quiser).

O fato é que, obsessões e fetiches são apêndices obscuros da vida humana...pequenos mundos para onde direcionamos nosso excesso ou falta de alguma coisa...uma rosa que regamos todos os dias, sem saber que toda rosa é a mesma rosa – que toda obsessão tem, no fundo, a mesma causa – toda rosa é a mesma rosa que apodrecia aos olhos de Natalie numa tarde ensolarada de sábado. Apodrecia porque fazia parte do ciclo patético a que se resume sua efêmera existência, apodrecia porque...talvez não conseguisse suportar toda a carga de emoção depositada nela...apodrecia porque, assim como aquela menina que agora a estava velando, sentia e absorvia tudo à sua volta e tudo lá ficava...trancado como em um baú triste de um jardim distante...assim, sufocava sob gritos agonizantes e punhaladas rasteiras.

O homem da maleta de couro marrom também já havia tido sua rosa moribunda, sua natureza terminal....aguentou durante muitos anos viver nas entranhas de uma oficina escaldante, recebendo ordens e agressões. Tudo em silêncio mórbido. Hoje, em sua desgastada memória, consegue recordar ainda a menina que tinha o mesmo corte de cabelo de Hitler, e que lhe levava parafusos, todos os domingos. Ao abrir a porta dos fundos da oficina, ela lhe entregava meia dúzia e ia embora, sem jamais pronunciar uma palavra sequer. Obviamente, ele não entendia tal ato, mas sentia-se feliz por partilhar uma estranha intimidade com uma desconhecida, talvez único laço que ainda o prendia às garras da vida.

Agora, andando pelas ruas cinzentas da cidadela, ele se perguntava: por que havia se lembrado daquela menina justo agora? Na verdade, essas lembranças avulsas de seu passado morto lhe vinham de vem em quando em mente, como uma luz que de repente se acende no meio da escuridão, como se não estivesse totalmente acabado, como se ainda restasse algo mal resolvido.

A esta altura, aquele homem já havia se redimido de todos os seus pecados, que não foram poucos. De sua infância, conservou a profissão exercida desde cedo e nada mais...Endureceu com os anos e perdeu a ternura e inocência. Porém, inocência foi algo que permaneceu presente em sua jornada... Após a morte do pai, (o que teria sido extremamente prazeroso, se o velho não tivesse deixado dívidas e inimigos) tomou frente à oficina. Um galpão vasto e úmido, que ficava um tanto afastado da pequena cidade. Esses e outros atributos contribuíam positivamente para as atividades desse homem. Uma dessas atividades era consertar carros...

Acendeu um cigarro e entrou em um bazar com prateleiras opacas e sem brilho. Levou doces e a única boneca, que estava militarmente sentada na última prateleira. A boneca era de plástico e tinha a cabeça revestida com camurça. Uma de suas pernas estava quebrada na metade e um braço era mais curto que o outro, dando um aspecto atrofiado. Seus cabelos foram confeccionados de uma espécie de corda e eram desbotados. Estava com um vestido branco, o homem deu uma olhada por baixo e viu a etiqueta que trazia o nome da marca: Jenkins. Saindo do bazar, foi visitar um cliente a quem tinha ficado de prestar serviço naquele dia. O Sol estava insuportável e ele mal podia esperar para presentear com a boneca e os doces.

Natalie continuava observando a decadência perene da rosa de ontem. Enquanto jogava um punhado de terra sobre a flor murcha, cantarolava: “On est bien peu de chose, et mon amie la rose, me la dit ce matin...”

Era como se ela estivesse enterrando um filho, um infante de mãos e testa geladas, feito de sangue, água e amor. A fragilidade lhe esmagava o coração. Não queria se lembrar da história, do porquê estava ajoelhada ali, cantando para uma rosa em leito de morte. Mas estava ali não por vontade própria, e sim porque o menino que ela amava havia colhido aquela rosa e lhe entregado, e, ao mesmo tempo, lhe confessou: “É como se Deus tivesse arrancado um pedaço de mim e colocado em você...”

Depois disto, ele se beijaram – ato que marca o renascimento e comunhão das almas – e ele se foi...

Natalie já sabia como segurar a dor lá dentro...Amarrou-a com fios de cetim, que não resistiram por muito tempo...As lágrimas surgiram raivosamente, como se além do que já havia ocorrido, tivesse perdido agora mais essa batalha.

O que teria pensado naquele momento? Deveria ter ido atrás dele, mesmo que o orgulho a estivesse sufocando! Não importava, o fogo arrebatador que brotava era involuntário e titânico – despedidas são sempre precoces – ele nunca iria saber o que ela sentia.

Era isso, pensou Natalie. Não havia nada a ser feito. Era só existir...dentro de toda a humilhação e arrependimento que a carne pode suportar. Ela mirava o céu, jurou nunca ter visto tamanha harmonia entre as nuvens, ela, com certeza, teria de ser a única dolorida, a única que se sentia corroída pelo magnífico Sol em uma tarde de Janeiro. - Maldito mundo, murmurou. - Aquela garota havia morrido, pra nunca mais ressuscitar.

Chegando à casa do cliente – um chalé na beira dos trilhos – o homem da maleta de couro marrom tocou a campainha e aguardou pacientemente. Foi um menino, que deveria estar no auge de seus 8 anos, quem atendeu à porta. Após o óbvio diálogo que deveri a acontecer, o garoto disse que estava sozinho em casa, que seu padrasto já voltava. O homem estremeceu. Não poderia ser...durantes os últimos anos ele vinha tentando fugir dessa situação mas agora tudo conspirava a favor...ele não podia fugir de seu próprio destino! “Esta é a oportunidade, não posso mais renegar minha natureza!”

Aquele pensamento foi o momento crucial. Realmente, era inútil tentar se afastar, já estava envolvido. Todas as contradições vinham se encontrar agora. “Vá! Entregue a ele os doces e a boneca! Não! Só os doces já serão o suficiente...sussurre o que você sabe que ele quer ouvir! Nos fundos? No jardim? Na beira dos trilhos? Não importava!” A comoção que tomava conta de seu corpo era imensurável e impossível de ser detida.

Os olhos de água salgada do menino emitiam uma interrogação. Mas era como se ele estivesse querendo aquilo, sim, eles sempre querem, pensou o homem. E, acendendo um cigarro, olhou mansamente para o céu fatídico daquela tarde de janeiro e disse, em um tom de voz aveludado:
- Eu o esperarei aí dentro, se você não se importar.

O menino assentiu com a cabeça e deu passagem ao homem.

A rosa de Natalie jazia em seu delírio.

Ouvi dizer que, certas coisas só podem ser manchadas uma única vez, e também que, lobos sempre serão lobos, mesmo revestidos por pele de carneiro.

Nenhum comentário: